UM POEMA CINEMATOGRÁFICO
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28 de junho de 2004

Embora não seja conhecido nacionalmente como Jorge Furtado, o cineasta Sérgio Silva é uma das mais agudas cabeças cinematográficas do Rio Grande do Sul; e, dentro do quadro atual do cinema brasileiro, mereceria um destaque maior do que o que lhe dão. Seu aprendizado se deu no curta-metragem, tendo rodado seus primeiros filmes em Super-8 e 16 mm; em 1990 ele lançou um longa-metragem em 16 mm, Heimweh/Nostalgia, co-dirigido pelo crítico de cinema Tuio Becker. Somente em 1997, em plena maturidade, Sérgio chegaria mesmo a um filme de ambições comerciais, Anahy de las Misiones. Agora, com Noite de São João (2003), transposição para o interior gaúcho dos conflitos dramáticos duma peça do sueco August Strindberg escrita em 1888, Sérgio dá seqüência a sua ousadia de filmar num meio pacato como o nosso. E surpreende novamente.

Superando inclusive alguns problemas de controle de elenco que havia em Anahy, em Noite de São João o realizador demonstra um pulso notável para a composição das interpretações, desde a figura rígida de Fernanda Rodrigues como a irritante e prepotente donzela burguesa Júlia até os tipos campesinos diversos vividos por Marcelo Serrado e Dira Paes; Araci Esteves é um caso à parte como força ancestralmente interiorana, dando sangue à vovó Joaquina que se encerra em seu quarto e espia a festa (o mundo, digamos assim) pela lente de uma luneta. O rigor formal de Sérgio se estende, como já havia ocorrido em Anahy, a uma muito pessoal utilização da fotografia e da música; longe dos planos abertos e ensolarados de seu filme anterior, fechando sua objetiva em enquadramentos mais íntimos e cerrados (no que a escuridão da noite em que se passa boa parte da narrativa, ajuda muito), Sérgio impôs ao fotógrafo Rodolfo Sanchez cores e iluminações impressionistas, criando para a história de Strindberg imagens que são verdadeiros poemas visuais, adotando um ritmo pictórico que nasce um pouco da beleza de alguns clássicos japoneses em que Sérgio se educou vendo filmes desde os anos 60. Se em Anahy a faixa musical fora entregue a Celso Loureiro Chaves, em Noite de São João é outra brilhante sensibilidade dos sons que tempos por aqui quem assina a direção das músicas, Ayres Potthoff. Assim, jungido pela nostalgia de direção, interpretação, fotografia e música, Noite de São João é um poema-conto, um achado dos pampas que, esperamos, possa ser descoberto pelo público do centro do país, geralmente mais chegado a sucessos fáceis como Cazuza, o tempo não pára (2004), de Sandra Werneck e Walter Carvalho, (artificiosamente incluído numa telenovela da Rede Globo de Televisão por escusos motivos mercadológicos), e arredio às coisas que vêm das províncias. Noite de São João, a despeito da essência pampiana de seu roteiro, não é um filme para caboclos, é uma obra digna de desfilar na corte: tem sentimentos e cérebro para tanto.

Sérgio empresta em seu filme sua visão marcadamente original ao universo de Strindberg, um mestre do realismo teatral sueco do século XIX que mereceu do cineasta nórdico Ingmar Bergman homenagem no final da película Fanny e Alexandre (1982), onde se citam trechos da peça de Strindberg O sonho: “... tudo pode acontecer, tudo é possível e verossímil. O tempo e o espaço não existem. Em cima de um significativo fundo de realidade, a imaginação espraia-se e tece novos padrões...” Ao filmar com sobriedade e inventividade o triângulo amoroso do drama Senhorita Júlia (o jogo de poder arcaico que se estabelece entre a burguesa Júlia e os peões enamorados João e Joana), Sérgio vem a caracterizar este processo duma imaginação que se dissolve sobre a parede da realidade, como queria Strindberg.

Por Eron Fagundes